sábado, 22 de dezembro de 2007

Matéria-prima

Eu queria trabalhar com cerâmica ou com argila. Queria ser jardineira, tratar de bromélias e podar pequenos bonsais. Queria trabalhar com qualquer coisa que não fosse gente, matéria-prima mais filha da puta que essa não existe.

Como esse psicólogo idiota e metido a besta pra quem eu trabalho. Fico ali, organizando a agenda dele e recebendo os clientes. Passo a maior parte do dia olhando pra escória que ele atende todo o santo dia. Como o coroa cheio da nota que acabou de chegar com o filho adolescente problemático. O moleque é uma mina de ouro pra qualquer psicólogo. Com dezessete anos, já fuma, cheira, arruma confusão em boate, dirige sem carteira, só faz merda. A cada quinze dias lá está ele, batendo ponto no consultório.

Ninguém pergunta minha opinião pra porra nenhuma, mas eu sempre achei que o babaca do pai não precisaria gastar tanto dinheiro com o garoto. Bastava tratar o filho com metade do rigor com que trata os funcionários da firma que ele dirige. Várias vezes já aconteceu de tocar o celular que enquanto os dois estão na sala de espera, normalmente ligação de algum subalterno. Quando isso acontece, num instante, o pai recupera a autoridade que não tem em casa e descarrega o esporro em quem estiver do outro lado da linha.

Mas o pior de tudo mesmo é a cara de tarado com que o filho da puta do velho fica me olhando. Enquanto o moleque fica viajando, olhando pra parede, o desgraçado me olha dum jeito que só falta babar, parece que vai cair dentro do meu decote. O que mais me dá raiva é que quando ele faz isso eu não consigo evitar, quando dou por mim, ta lá o meu peito duro, quase furando a blusa. Não sei se é por ter um homem me olhando, pelo tempo que eu não dou uma foda decente, sei lá. Eu só sei que, mesmo sabendo que aquele estupor não passa um velho broxa e babão, fico melada de escorrer pela coxa sempre que ele comeca a me olhar.

Acabo ficando com ódio do velho, que me olha como se um fosse uma alcatra pendurada no balcão do açougue e com mais ódio ainda de mim mesma, por ficar excitada com essa situação.


Isso é o ser humano, definitivamente a matéria-prima mais filha da puta que existe.

domingo, 9 de dezembro de 2007

Prazeres a quente e a frio

Palavrões sussurrados entre os suores de um sexo despudorado podem ser excitantes. Mas eles não são afrodisíacos somente entre os lençóis. Quem diria que uma sensação tão próxima do prazer sexual poderia ser experimentada logo ali, ao volante de um carro, numa movimentada esquina do Centro da cidade?

Foi exatamente isso que Fernando sentiu quando aquele motorista de ônibus imbecil botou a cara pra fora e berrou em sua direção:

_ O que foi, tá reclamando do quê, porra?

Fernando apenas reclamara de uma fechada monumental que recebera do ônibus. Sua pequena Fiat Uno quase ficara espremida entre o ônibus supracitado e uma caminhonete que nada tinha a ver com a estória. Se acontecesse duas semanas antes, a cena só seria motivo para mais estresse, para chegar no trabalho aporrinhado da vida, sem paciência para cobranças e descontar tudo nos subordinados. Mas não naquele dia. Naquele dia, Fernando estava acompanhado, muito bem acompanhado. Sua acompanhante, uma pistola Glock calibre 45, descansava quietinha em sua cintura, esperando a hora de trabalhar.

Os palavrões do motorista do coletivo foram tudo o que Fernando precisava ouvir para instintivamente, passear com a mão direita pelo cabo frio e metálico da pistola.

E pensar que algumas das coisas tidas como sublimes prazeres da vida são associados a calores e a formas tenras e úmidas. As delícias da mesa, os amantes que misturam corpos, hálitos e fluidos entre os lençóis, os aconchegos maternos. Os poetas que tanto louvam estes aspectos da vida não sabem o quão sensual, o quão afrodisíaca é a sensação de poder proporcionada por aquele cabo seco, frio e metálico entre os dedos.

Inebriado pela possibilidade de calar em definitivo a mínima ofensa, antegozando a facilidade que teria para fazer brotar lágrimas no rosto de cada um que risse dele, Fernando acabou perdendo de vista o motorista de ônibus.

Mas não ficou chateado. Um mundo novo se abria ante a possibilidade de sua amiga ser posta pra funcionar. No trânsito caótico de uma grande cidade, na saída de um estádio de futebol, ou em qualquer grande evento, não importa. Com certeza não faltarão oportunidades.

sábado, 1 de dezembro de 2007

O que eu escrevo

O que eu escrevo não é puro, não é bonito, não é cristão. O que eu escrevo não entra pela porta da frente, não vai à missa de domingo e nem sai na coluna social. Nada do que eu escrevo é respeitável nem merece condecorações.

Meus escritos não são ortodoxos, não beijam a esposa na testa antes de sair pra trabalhar. Não colaboram com obras sociais, nem respeitam os mais velhos. O que eu escrevo não come verdura e nem dorme cedo.

Eu escrevo sobre o feio e sobre o sujo. Escrevo sobre paixões e sobre necessidades fisiológicas. Meus escritos se debruçam sobre ódios, invejas e rancores. As coisas que escrevo bebem demais e ficam inconvenientes, falam obscenidades para as moças e baixam as calcas no meio da rua.

Tudo o que eu escrevo fala demais, não tem modos nem sabe se portar à mesa. Minha escrita é visita indesejada, chega sem avisar e não tem hora de ir embora.

O que eu escrevo é humano, terrivelmente humano, apenas isso.