sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O refúgio da máscara

Confesso que menti. E minto ainda. E mentirei até o fim dos meus dias, na medida em que a verdade me oprime, me esmaga e me incomoda com a profundidade de uma dor física. A verdade me confronta com minhas humanidades limitadoras, com a patológica incapacidade que tenho de adaptação a um mundo que não entendo e diante do qual me sinto cada vez mais um estorvo, um desvio.
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Na mentira me refugio. É do alto de uma mentira hospitaleira que nego um tostão para as mãos estendidas com as quais me deparo todos os dias. É na mentira que escondo a falta de coragem em largar um emprego estúpido e mal-remunerado, depreciador de minhas qualidades, onde minha dignidade é rebaixada cotidianamente. Sob uma pilha de mentiras eu oculto minhas insatisfações conjugais, ao mesmo tempo em que cultivo uma pilha de fantasias sexuais incompreendidas, repletas de mulheres outras que não aquela à qual jurei fidelidade um dia.
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A casa, o trabalho, a rua, todo lugar é o lugar da mentira, cuja armadura inexpugnável se apresenta até mesmo diante das pessoas mais próximas. Dos familiares, da companheira, dos amigos e dos inimigos.
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Mentira, hipocrisia, farsa, encenação. Há muitos nomes para isso, embora a maioria ainda prefira chamar de normalidade.

domingo, 27 de setembro de 2009

The magic bullet

Entre as muitas teorias acerca do assassinato de John Kennedy, uma chamou atenção por absolutamente inverossímil, por ser inacreditável ao limite do ridículo. Era a teoria segundo a qual um atirador sozinho teria feito um único disparo. A mesma bala teria causado, através de múltiplos ricocheteios, os ferimentos encontrados em Kennedy e no governador do Texas, John Connally, que o acompanhava. Era o teoria da magic bullet, ou bala mágica.
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Atire a primeira pedra ou faça o primeiro disparo de rifle aquele que nunca sonhou em encontrar-se com a sua bala mágica. A bala redentora, que liberta de todas as mazelas de um mundo corrompido ao qual não conseguimos nos adaptar. Um mundo no qual não cabemos, com nossos sonhos e inquietações.
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O conhaque que desce em goles profundos conforta e anestesia. E adia o meu encontro com a bala mágica. Mas não impede que eu possa me encontrar com as muitas que voam por aí, tão desnorteadas quanto as pessoas que as disparam. Somos infelizes, sem escapatória, escravizados pelo medo de morrer, e pelo medo de viver, medos frustrantes e incapacitantes em igual medida.
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Que venham as balas mágicas. A minha ou a sua.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Não tão vasto mundo

O trabalho transforma o mundo. Nesse exato momento, ele transforma o meu mundo, reduzindo-o ao mínimo de suas potencialidades, que são o máximo que eu posso extrair depois de um dia de trabalho árduo. Um trabalho que me exaure ao ponto de incapacitar-me para a plena fruição do que a vida possa me oferecer. Um trabalho que, ao fim do dia, não me deixa energia para muito mais que um apertar de botões do controle remoto.
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Meus horizontes não abrangem mais do que três ou quatro pequenas compensações. O idealista que sonhava em aprimorar-se nos estudos, engajar-se num trabalho voluntário ou passar mais tempo com família contenta-se com um rosário de pequenos prazeres, tão escassos quanto irrelevantes. Um programa de auditório na TV, uma lata de cerveja, uma refeição gordurosa ou uma rápida olhada nos gols da rodada.
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Quem já sonhou em viver grandes paixões contenta-se com olhadas furtivas nos seios fartos de sua cunhada, imaginando como seria sugar aqueles mamilos grossos, eriçados ao toque da língua. Quem almejava uma carreira profissional ascendente e meteórica dá-se por satisfeito em pagar as contas ver sobrar alguns tostões no fim do mês. Quem se imaginava com potencial para fazer revoluções e mudar o mundo não quer mais do que um micro-universo doméstico ordenado, com mulher, filhos, trabalho e igreja.
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O trabalho tem diminuído bastante minha vida e meus horizontes. Tenho dúvidas se ainda caibo neles.

sábado, 20 de junho de 2009

O drama da vocação enjaulada, ou a vida no corredor da morte

Como milhões de brasileiros, sou dono de uma vocação enjaulada. Por dentro do executivo estressado, que bajula clientes e fecha grandes negócios, debate-se um frustrado professor de literatura, condenado à prisão perpétua pelas limitações salariais de sua vocação.
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O preso não tem bom comportamento. Ele se debate, rebelando-se e deixando um rastro de destruição a cada tentativa frustrada de vencer os muros de sua prisão, que se apresenta cada dia mais definitiva.
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Meu único conforto é que a pena não se anuncia muito longa. Não costuma ser grande a expectativa de vida dos homens que são carcereiros de si mesmos. Não raro, o preso morre jovem e frustrado, levando consigo seu carcereiro involuntário. Decerto morrerei esmagado sob o peso de muitas aulas não dadas, de alunos não ensinados e de livros não lidos. Como toda a minha geração.
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Não tive sorte ao nascer num país que concentra a maior massa carcerária de vocações em todo o Universo. Sem indultos nem progressão de regime.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Se dando ao desfrute

A bofetada seca lhe cortou o fôlego por alguns momentos. Ela adorava ser esbofeteada por aquelas mãos grossas dele durante o ato. Normalmente a bofetada vinha no auge da urgência, quando ele, cego de prazer e de fúria, começava a deixar-se levar pelo puro instinto, estocando-a com força, em meio a grunhidos arfantes e animalescos.
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Talvez a bofetada lhe fosse tão prazerosa por trazer a lembrança das pequenas sacanagens da adolescência. Foi depois de uma delas, uma gostosa punheta no primeiro namoradinho, que ela apanhou no rosto pela primeira vez. O tapa foi dado por uma tia que os flagrou no exato momento em que a menina se deliciava com o calor da porra do garoto escorrendo-lhe entre os dedos. “Menina direita não se dá ao desfrute!”, foi a única coisa que ela pôde ouvir em meio ao longo sermão que a tia velha e solteirona lhe passou.
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De alguma forma, o latejar do rosto depois da palmada lhe remetia à linda imagem do garoto imberbe gemendo e gozando em seus dedos. Sentiu um descritível poder, ao ver que era capaz de fazer um homem perder a noção dos sentidos com um simples movimento das mãos. E aquele tapa a fazia lembrar-se disso.
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Agora ela estava ali, anos depois, já livre dos acessos moralistas da tia mal-amada, debaixo de um homem com o dobro do seu peso e tamanho, que a comia com força, socando-lhe um pau enorme, que lhe roubava todo o ar e a deixava fora de si quando entrava até o fundo.
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Dar-se ao desfrute. Era a isso que ela se dedicava com tanto afinco e satisfação. Era a doce lembrança da expressão usada pela tia velha, jugo da qual ela já se libertara. Ela agora dava-se ao desfrute inteiramente, deixando aquela homem grandalhão virá-la de um lado para o outro enquanto fodia-lhe a buceta com violência, transbordando de um prazer feroz e egoísta. Que atingiu o seu auge quando ele tirou a vara, úmida e brilhante dos seus sucos e posicionou na entrada do ânus. Um único golpe, uma única estocada certeira. E ele já deslizava novamente pra dentro dela, agora por trás.
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Doeu. Doeu muito. Mas na própria maneira de gemer, ela acabou traindo-se e revelando que era exatamente o que queria. Há muito ela ansiava por aquela dor. Nada lhe era mais prazeroso que sentir-se usada por alguém indiferente ao que ela poderia sentir diante de uma penetração tão furiosa. O grunhido arfante daquele homem era música, marcado pelas pancadas firmes dos testículos na borda do seu cuzinho dilatado ao máximo.
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Ali, ela deu-se ao desfrute. Libertando-se de todos os seus fantasmas, de todos os medos e tabus que haviam lhe enfiado na carne e na alma, causando-lhe uma dor muito mais profunda e duradoura que poderia lhe proporcionar o mais bruto e bem-dotado dos amantes. Que o mundo acabasse ali, com ela dando-se ao desfrute e servindo de objeto do prazer daquele homem imenso, que a possuía em meio a tapas e palavrões. Que não servia a nenhum outro propósito que não desfrutá-la. E tome mais um tapa seco no rosto. Foi o que bastou para ela gozar mais uma vez.
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sábado, 31 de janeiro de 2009

Onipotência

Do nada, Deus disse "Faça-se a luz". Mais ousado sou eu que, do caos do mundo, do massacre, da perdição, da violência, da fome e da destruição, digo "Faça-se a poesia". E ela se faz, do meu gole de conhaque, do calor das mulheres que experimento ou até mesmo da dor de nossa juventude morta a balas perdidas.

Onipotência é isso.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Saudades da bomba derradeira


Há alguns anos se dizia
Que o mundo acabaria
Ao simples toque de um botão
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Era a bomba derradeira
Cuja atômica poeira
Levaria-nos de roldão
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Hoje eu sinto falta
Da tal bomba derradeira
A que numa nuvem alta
Explode o mundo de primeira
*
Pois mais triste é este mundo
Que desfaz-se em mil pedaços
Sem rima
Sem métrica
Em Gaza ou no Rio de Janeiro
O mundo que acaba
Mais um pouco todo dia